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Transição capilar: o que me levou a fazer as pazes com o meu cabelo


O assunto de hoje aqui no Nairando é transição capilar, ou seja, vou falar sobre como eu reencontrei o meu cabelo natural. A primeira vez que sofri preconceito por causa do meu cabelo foi no dia da minha primeira comunhão, dentro da igreja. Eu devia ter 10 anos e a catequista me perguntou por que eu tinha ido com o meu cabelo daquele jeito (solto) e não tinha feito escova como a minha amiga, acho que eu nem sabia o que era fazer uma escova naquela época. Talvez eu até tenha sofrido alguma discriminação antes, mas foi essa a que me marcou pela primeira vez.

Na época eu não contei sobre isso para ninguém, não tinha noção do tanto que esse comentário era errado. A minha mãe descobriu esse episódio lendo uma entrevista que eu dei faz uns anos falando sobre a minha relação com o meu cabelo, ela ficou bem puta. A verdade é que eu não sei porque não contei, só sei que guardei aquele comentário e me senti horrível o resto do dia e passei a odiar ainda mais o meu cabelo. Eu não consegui encontrar as fotos desse dia, mas em todas apareço com uma cara muito triste. Lembro como esse comentário fez eu achar o cabelo da minha amiga muito mais bonito e como eu comecei a me comparar com as outras meninas.

O meu cabelo sempre foi crespo e quando eu era criança ele era muito pouco definido. Eu puxei o cabelo do meu pai e a minha mãe, que tem o cabelo mais liso, não fazia ideia de como cuidar do meu cabelo, coitada. Eu sei que ela sofria com o meu sofrimento de não gostar do meu cabelo e que era uma missão díficil para as duas. Não era nada fácil pentear e arrumar para ir para a escola. Não tinhamos acesso a produtos especializados e nem a informações. Era muito kolene e escova de cabelo para tentar domar a fera.

Primeira intervenção

Aos 12 anos eu fiz kanekalon (leia canicalon), tranças feitas com o meu cabelo e com cabelo sintético. Eu tenho muito cabelo e sempre ouvi que é cabelo para três cabeças. Acho que isso justifica o fato da cabeleleira ter demorado 10 horas para fazer as tranças. O processo de trançar foi um caótico, eu lembro que era muito doloroso, porque tinha que puxar bem a raiz para ficar bem feito, e ficar sentada por 10 horas nessa idade foi surreal. Nem com a minha idade atual eu imagino ficar tanto tempo sentada com alguém puxando o meu cabelo, coitada da Naiara do passado.

Depois desse processo tenso, a verdade é que eu gostei do resultado. Foi a primeira vez que escondi o meu cabelo natural e consegui sumir com a forma e o volume indomavéis. Eu acordava e o cabelo já estava pronto, pela primeira vez o meu cabelo era comprido –já que o meu cabelo natural só crescia para cima- e foi a primeira vez que eu me senti mais próxima do cabelo das minhas amiga. Afinal, me ensinaram que eu tinha que parecer com elas. Foi uma boa estratégia para deixar o meu cabelo crescer, acho que eu usei tranças por um ano.

Foi incrível até que meses depois a minha raiz começou a crescer e mais uma vez atrapalhou tudo. Minha mãe e a minha avó materna tiveram que tirar todas as tranças para que eu pudesse refazer o procedimento. As duas trabalharam muito em mais essa missão e demoraram umas oito horas para tirar todas as tranças. Eu chorei até dormir enquanto elas tiravam tudo. Na segunda vez que eu fiz, optei por fazer só com o meu cabelo natural (tem foto aqui embaixo).

Nessa fase eu estava com aproximadamente 12 anos e as tranças já não me faziam feliz. Eu queria ter franja como as outras meninas, queria usar chapinha, queria ter um cabelo que na época eu achava normal. Não importava o quanto os meus pais me apoiavam e me lembravam que eu não precissava ser igual a ninguém, tem uma fase na vida que a gente quer ser e pronto. O meu objetivo era ter o cabelo liso.

O primeiro alisamento

Foi aí que na transição dos 12 para os 13 anos eu fiz escova progressiva pela primeira vez. Eu lembro como se fosse hoje, foram seis horas sentada na cadeira do salão, um cheiro super forte de química e muito dinheiro investido pela minha mãe, mas eu amei o resultado e eu sorri muito na frente do espelho. Eu gostei demais do meu cabelo, do comprimento, do liso, tudo era novo para mim e tudo me encantava. Eu não via a hora de chegar na escola no dia seguinte com o meu novo cabelo. Eu amei tanto o meu novo cabelo que passei os oito anos seguintes repetindo esse procedimento a cada três, quatro meses mais ou menos.

Até que em 2013, quando eu tinha 21 anos, eu tomei a decisão de parar de alisar. Eu já estava na faculdade de jornaslimo, morava em São Paulo (SP), trabalhava e comecei a questionar alguns comportamentos que eu tinha. Depois de tantos anos me escondendo atrás de um cabelo liso, eu me dei conta de que nem conhecia o meu cabelo natural.

Algumas coisas que me fizeram desisitr do alisamento foram: o custo do procedimento (era caro pra cacete), o tempo que eu tinha que ficar no salão e o cheiro dos produtos. Além disso, a falta de personalidade começou a me incomodar também. Eu era totalmente dependente da escova progressiva, da chapinha e no fim o meu cabelo estava sempre igual. A raiz não podia crescer um dedo que eu já voltava a ficar insatisfeita.

Quando eu deixei de alisar, a primeira coisa que fiz foi cortar o cabelo para tirar o comprimento da parte lisa. Eu lembro que eu pesquisava sobre transição capilar e acho que esse termo nem existia. Eram poucos os blogs com informação sobre como cuidar do cabelo enquanto a química ia embora e também era basntante complicado achar produtos especializados para cachos.

A transição capilar não foi fácil não. Faltou informação, faltou apoio e produtos adequados. Sempre tinha alguém me perguntando se eu não ia mais alisar, o que eu ia fazer ou se eu estava louca. Não vou negar que algumas vezes eu pensei em desistir e marcar logo uma progressiva no salão que tinha embaixo de casa, mas eu fui forte e fui até o final com a minha decisão.

A revolução dos cachos

Em 2014/2015 rolou um boom de pessoas deixando para trás o alisamento e reencontrando os cachos e os crepos. O mercado entendeu o recado e começou a fornecer produtos para esses tipos de cabelos, patrocinou influenciadoras e blogueiras, chamou cacheadas para as publicidades. Surgiram grupos nas redes sociais para troca de experiências e dicas de tratamentos caseiros, todos os tipos de orientações para descobrir o tipo de cabelo e como cuidar dele. Começou a representatividade. Na revista, na televisão, na internet, nas ruas, em todo lugar tinha cabelo cacheado. Foi o início da revolução dos cachos e dos crespos. Foi o início da minha revolução.

A primeira vez que usei o meu cabelo natural e solto foi em maio de 2015, eu ainda ficava bastante insegura com a forma e o volume. A decisão de redescobrir o meu cabelo começou junto com todo esse processo de autoconhecimento, feminismo e amor próprio. Assumir o que eu era, as minhas raizes e me sentir conectada comigo mesma tem tudo a ver com esse caminho que me trouxe até aqui, até a Naiara que sou hoje.

Hoje, o meu cabelo me empodera, faz parte do que eu sou e eu tenho muito orgulho dele. Ele é lindo! Se eu me arrependo de ter alisado? Não. A verdade é que eu acho que foi um processo necessário para que eu sobrevivesse ao momento e ao espaço que eu estava. Não culpo nem um pouco a minha família, que sempre apoiou e fez muitos sacríficios para que eu me amasse, me aceitasse e não sofresse tanto. A minha mãe foi uma das pessoas que não entendeu quando eu falei que ia parar de alisar e hoje ela é uma das maiores fãs do meu cabelo e da mulher que eu me tornei.

Amor próprio

Eu fico muito feliz com tudo que aconteceu e guardo esse episódio como uma das primeiras decisões que eu tomei para a minha vida. Olhando para trás, hoje eu me vejo muito forte por seguir em frente sozinha nessa decisão. Talvez esse tenha sido o primeiro não que eu falei para os outros e para a sociedade. Foi só o começo de uma revolução que fez a Naiara se reconectar com tudo que ela queria ser.

Sabe quando as pessoas falam que o mundo dá voltas? Acho que ele dá mesmo. Depois de rejeitar o meu cabelo e odiar o meu corpo por tanto tempo, em 2017, eu fiz uma publicidade do lançamento de um produto para cabelo cacheado da Dove. Além de fazer um bem danado para a minha autoestima, ganhar uma grana e representar uma marca gigante, eu fiz uma das coisas que mais me faz feliz nos últimos anos: inspirar outras mulheres. Além disso, acho que eu também consegui educar muitas outras mulheres.

O texto foi grande, mas não tinha como reduzir mais essa experiência tão intensa. Espero que vocês tenham gostado de conhecer a história do meu cabelo e entendam que se sentir bem é coisa séria, autoestima é coisa séria e bullying é coisa muito séria. Outra coisa muito importante é entender que os comentários que fazemos sobre os outros deixam marcas. Eu já chorei muito por causa do meu cabelo e isso tem mais a ver com o comportamento alheio do que com o meu cabelo. Se você é mulher e o seu cabelo não foi um problema na sua infância, saiba que você teve um privilégio. Não é coisa de criança ter quer lidar com discriminação e ter que passar horas em um salão de beleza, mas, infelizmente, isso acontece mais do que a gente imagina. Eu não fui a única e nem a última a ter que enfrentar isso, mas eu espero que a gente possar melhorar como sociedade e empoderar cada vez mais meninas e mulheres.

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