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Menstruação: sobre ser um corpo menstruante numa sociedade machista


Eu menstruei pela primeira vez no verão de 2002, com 10 anos de idade. Eu não fazia ideia do que aquilo significava, mas senti rápido toda a pressão que a sociedade coloca em um corpo menstruante. Não pode vazar, não pode sujar, ninguém pode saber, esconde o absorvente, é sujo, cólica faz parte, é assim mesmo, menstruar é uma merda, dói mesmo... Entre tantas outras coisas que escutamos quando viramos "mocinhas".

No meu primeiro ciclo, eu me sentia tão suja que em UM m dia usei dois pacotes de absorventes. Eu troquei um atrás do outro porque eu não queria sentir o sangue. Menstruar sempre foi muito nebuloso e eu nunca entendi muito bem o que era aquilo. Só agora, depois de quase duas décadas, eu comecei a entender o que significa ser mulher e, principalmente, o que é ser um corpo menstruante na nossa sociedade machista.

Nos últimos anos, eu tenho prestado mais atenção nas experiências de outras mulheres, tenho lido sobre menstruação e tenho cada vez mais certeza de que se os homens sangrassem todos os meses TUDO seria diferente. Tudo mesmo!

Menstruação e rotina

Desde muito nova eu aprendi que menstruar dói e que eu tinha que lidar com essas dores. Eu perguntei na semana passada no meu instagram quem sofre com cólica e 71% das mulheres responderam que sofrem para cacete. É muita mulher se contorcendo de dor todos os meses. Mas quem se importa com isso?

Temos que tomar remédio e seguir a rotina como se nada tivesse acontecido. Toma remédio e vai trabalhar. Toma remédio e vai estudar. Toma remédio e vai pegar o transporte público. Toma remédio e vai para a reunião. Toma remédio e vai. Toma remédio!!! Se você ousar desmarcar um compromisso por cólica, dor de cabeça, enjoo ou dor de barriga você é fraca. Poucas pessoas vão te levar a sério, essa é a realidade.

No ensino médio, eu fui embora da escola muitas vezes porque a cólica fazia a minha pressão baixar e eu desmaiava. Já desmaiei na barquinha (eu morava no Guarujá (SP) e estudava em Santos (SP), pegava a barquinha todos os dias). Na época da faculdade, já em São Paulo (SP)< eu já quase desmaiei e fui socorrida pelos seguranças da estação do metrô. Tudo isso porque eu tinha que entregar um trabalho, não respeitei o meu corpo e fui com dor mesmo. Com muita dor!

Não consegui chegar a tempo e não entreguei o trabalho. Depois, conversei com o professor, homem, e a reação foi: foda-se. Ele só aceitaria o trabalho depois do prazo se eu tivesse um comprovante de que eu fui socorrida no metrô a caminho da faculdade. No geral é isso que acontece, eles não acreditam na nossa dor. Pouca gente acredita.

Ninguém se importa com a nossa menstruação. As pessoas acham que os corpos de todas as mulheres reagem da mesma forma, inclusive os médicos. Mas não é assim, cada corpo é um corpo e cada ciclo é muito particular. Falta um olhar mais individualizado para entender o que menstruar significa na vida de uma mulher.

O incentivo ao anticoncepcional

Eu comecei a tomar anticoncepcional com 12 anos por orientação da ginecologista e só parei com 24. Foram 12 anos socando hormônios no meu corpo. Hormônios que deveriam aliviar a TPM e a cólica, mas não ajudavam muito. Fora isso eu tomava remédios fortes para a cólica, funcionavam por dois meses e depois já não tinham mais efeito. Eu chorava, socava a minha barriga e falava que queria tirar o meu útero. Se você nunca sentiu uma cólica forte, apenas tenha empatia, porque é o negócio é louco.

Depois de um tempo percebi que o anticoncepcional estava me fazendo mal. Tomar essas pílulas todos os dias me deixavam muito deprê, eu sentia muita dor no corpo, dor de cabeça e muita dor nos seios antes de menstruar. Resolvi parar de tomar para ver como o meu corpo reagia e me senti MUITO melhor. Os relatos que eu li de meninas que tiveram graves problemas de saúde causados por esses remedinhos também me motivaram a parar.

Alguns sintomas da TPM deixaram de aparecer todos os meses e eu passei a me sentir mais conectada com o meu corpo. Parou de doer? Não, mas eu me sinto melhor sem as pílulas. Já são três anos sem tomar anticoncepcional e nem penso em voltar a tomar.

Menstruar não é ruim

Por causa de tudo isso que eu escrevi, parece que menstruar é uma coisa ruim, mas não é não. Talvez ninguém tenha te falado, mas menstruar é muito bom e natural. Toda mulher que você vê na sua vida já passou ou passa por isso. O grande problema é que mesmo sendo uma coisa super normal, menstruação ainda é um tabu na sociedade.

Mulheres sangram todos os meses e a gente não fala sobre isso. Pare para pensar em quantas vezes você falou abertamente sobre menstruação com alguém ou em quantos profissionais da saúde se interessaram pelos seus relatos, suas dores e foram além dos procedimentos normais.

Vocês percebem que quando existe uma coisa exclusivamente de mulheres ela é negligenciada pela sociedade? É por isso que ninguém leva ciclo menstrual a sério. É por isso que desenvolveram medicamentos que escondem a nossa menstruação e todos os sintomas relacionados ao ciclo menstrual. É por isso a sociedade ridiculariza a TPM. Também é por isso que existe violência obstétrica e que abortar é crime. Quando é coisa de mulher ninguém se importa. É horrível perceber isso, mas é a realidade.

Mulheres salvando mulheres

​No livro 'Yo Menstruo - Un Manifesto', da escritora espanhola Erika Irusta, ela chama a atenção para várias questões fundamentais sobre menstruação. Infelizmente o livro ainda não está disponível no Brasil, mas vou dividir com vocês algumas percepções dela que me abriram os olhos.

Primeiro ela chama a atenção para o fato de que a ovulação é FUNDAMENTAL para a saúde física e para o bem-estar mental e emocional das pessoas menstruantes. Segundo que o ciclo menstrual, com as suas diferentes mudanças físicas, mentais e emocionais, não vai ser cuidado e nem respeitado porque a sociedade foi criada por homens, ou seja, corpos que nunca menstruaram (e nem vão menstruar). Por isso - e outras coisas - menstruar é um ato político.

Qualidade de vida

O livro também cita que pesquisadores já estudaram a possibilidade de desenvolver anticoncepcionais hormonais para homens. Mas a ideia não foi aprovada devido ao grande número de efeitos colaterais, entre eles o encolhimento dos testículos. Então, foi decidido que as mulheres AGUENTAM melhor os efeitos colaterais que os homens, porque ELES PRECISAM DE MAIS QUALIDADE DE VIDA. Vocês têm noção de como isso é sério e preocupante?

Escrevendo sobre isso eu quero chamar a atenção para o nosso comportamento diante disso tudo. Já deu de nós mulheres repetirmos as falas das gerações passadas, precisamos exigir mais respeito da sociedade e, principalmente, dos profissionais da saúde. Precisamos respeitar umas as outras dando credibilidade para os relatos de outras mulheres. Também precisamos cobrar mais pesquisas e estudos sobre os nossos corpos. Não dá mais para continuar com "é assim mesmo" se estamos falando de algo que afeta a nossa vida todos os meses. Nós também precisamos de qualidade de vida.

Saúde da mulher importa

Ainda de acordo com o livro da Erika, estudos mostram que 1 a cada 5 mulheres pode ter endometriose. Mesmo assim, os diagnósticos chegam muito tarde e pouco se sabe sobre a doença. Isso porque os médicos não pedem exames e não consideram as dores que as mulheres relatas. São iniciativas de mulheres médicas, pesquisadores e pacientes que estão conseguindo mais pesquisas para entender e dar visibilidade para essa doença que afeta mais pessoas que diabetes, epilepsia e asma juntas!!!

Quando eu comecei a entender alguns sintomas do meu corpo e como isso tinha efeitos negativos na minha vida, eu fui procurar ajuda. O que aconteceu? Fui vítima de gordofobia médica. Juntei uma grana e fui em uma ginecologista de um coletivo feminista. Sabe o que ela fez? Reduziu todo o meu relato e queixas aos meus hábitos e o meu peso. Isso sem pedir exames e sem conhecer os meus hábitos. Esse foi o comportamento de uma médica que atende em um coletivo e se diz feminista. Gastei 300 reais para isso. Imagina o que outras mulheres não passam por aí... Mas isso é tema para um outro post.

Licença-menstruação

No Brasil existe um projeto de lei na Câmara dos Deputados que defende a licença-menstruação e eu acho incrível. Incontáveis vezes eu já fui trabalhar sem condições alguma de fazer um bom trabalho, com dores, falta de concentração, desânimo e outros sintomas. Não é legal e poucas são as empresas com interesse no bem-estar do trabalhador. Tem chefe que até compra remédio com o objetivo de acabar com a sua cara de desconforto, mas te mandar para casa para descansar jamais!

Caso a lei seja aprovada, o que eu acho bem difícil, a mulher terá direito a até três dias de folga. Depois, essas horas deverão ser compensadas. Ou seja, não é um presente para as mulheres, é um direito e que deverá ser usado com responsabilidade.

Pela minha experiência, tenho certeza que uma iniciativa como essa aumentaria a produtividade nos outros dias. O problema real é que a menstruação ainda é um tabu e muitas mulheres não se sentiriam confortáveis para falar de menstruação e seus sintomas no ambiente de trabalho. Fora as empresas que deixariam de contratar mulheres e a reação machista que esse tipo de decisão causaria na sociedade, inclusive por parte de mulheres machistas.

Privilégios femininos

Enquanto estou aqui escrevendo sobre as minhas descobertas e reflexões sobre a menstruação e o corpo feminino, eu reconheço os meus privilégios e sei que a minha realidade não representa a maioria das mulheres. Nunca me faltou orientação ou meios para encontrar informação, nem absorvente ou remédios e isso já é muita coisa.

Também sei que acesso à saúde é um privilégio. Quando a minha família perdeu estabilidade financeira, a primeira coisa que ficou para trás foi o convênio médico. Saúde não é prioridade para quem precisa se preocupar com morar e comer, lembrem-se disso.

Por isso, não podemos esquecer que existem MUITAS mulheres que são muito mais negligenciadas quando o assunto é menstruação. Temos mulheres que estão presas, são de responsabilidade do Estado, e não têm absorventes, mulheres que não têm acesso à saúde e nem recebem orientação sobre seus corpos, mulheres que não têm com quem falar sobre TPM, mulheres que não sabem que um médico pode e deve ser questionado, mulheres que não conhecem anticoncepcionais e mulheres que não podem se dar ao luxo de se preocupar com menstruação, porque a vida é muito dura e sobreviver é mais importante.

Por isso, precisamos fazer a informação circular e, sempre que possível, brigar para que a nossa voz seja ouvida. As nossas dores não podem ser negligenciadas e nem os nossos ciclos escondidos. Conhecer, entender e respeitar o nosso corpo também é autocuidado e tem tudo a ver com bem-estar e saúde mental. Eu ainda não sei como, mas precisamos dar um jeito para que nenhuma mulher se sinta menos por menstruar.

Recomendo o documentário 'Absorvendo o Tabu', que ganhou um Oscar no começo do ano e está disponível na Netflix. O filme mostra a realidade de mulheres indianas quando o assunto é menstruação. Muitas delas nunca viram um absorvente, muitas deixam a escola quando começam a estudar e outras tantas não têm nem coragem de falar de menstruação. Tudo isso só confirma que tratar a menstruação como um tabu só prejudica a vida das mulheres.

É urgente avançar nas causas que eu citei no início do texto, como entender os sintomas dos nossos corpos, mas também temos que melhorar a base. Além de lembrar que mulheres vivem realidades diferentes. Ainda temos mulheres usando miolo de pão na pepeca para conter o fluxo menstrual, ainda temos mulheres morrendo sem nunca terem ido à uma ginecologista e também temos mulheres que não procuram atendimento ginecológico por vergonha do próprio corpo. Ser mulher não é brincadeira!

Como podemos começar uma mudança? Lembrando que saúde da mulher é importante e que nós precisamos falar mais sobre isso. Bora falar mais de menstruação, dos nossos ciclos e dos nossos corpos. Se der vergonha, lembra que toda mulher menstrua e que não tem nada de errado nisso.

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