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Um jantar totalmente no escuro, você topa?


O meu companheiro me convidou para um "jantar às cegas" (cena a ciegas, em espanhol) em um restaurante onde se come muito bem e eu logo aceitei. Na minha cabeça seria um jantar com cardápio desconhecido. Pensei no conceito que usamos no português brasileiro para encontros às cegas, que é quando você sai com uma pessoa que não conhece.

Eu que adoro uma nova experiência e uma boa refeição não tinha dúvidas de que seria bacana. E foi mesmo! A coisa é que o que aconteceu naquela noite foi totalmente diferente da minha ideia de jantar às cegas. Não tinha nada a ver com cardápio desconhecido. Era sobre jantar no escuro, provar algumas horas de cegueira e valorizar a audição, o paladar, o olfato e o tato. A visão, sentido supervalorizado pela sociedade, ficou de fora.

E aí, você toparia um jantar às cegas?

Se eu fosse você aceitaria a experiência. Por favor, não faça sozinha na sua casa para não causar acidentes. Lá eu não vi o que comi, não vi a cor do vinho, nem a cara do pão, o tipo de guardanapo, a qualidade da mesa e da cadeira e nem a decoração do ambiente. Aliás, eu nem fazia ideia de como era o ambiente. A sala era totalmente escura. Em uma mesa para dois, eu não enxergava o meu companheiro sentando na minha frente, mas a gente podia se tocar. Acho que na tentativa de compensar a falta da visão, nós seguramos a mão um do outro com mais intensidade e por mais tempo do que costumamos fazer durante uma refeição.

Nos intervalos da entrega de cada prato, teve música ao vivo e eu não faço ideia de como era o cantor. Na sala totalmente sem luz, ele entrou, cantou e foi embora. Só foi possível apreciar a sua voz e o som do violão. Para encontrar o guardanapo, o prato ou o copo, eu tive que tatear a mesa, estratégia que eu nunca tinha usado. Para tentar descobrir o tipo de vinho que serviram, eu levei o copo ao nariz e também percebi o poder do meu paladar. Sem a visão, precisei confiar mais na minha audição. Confesso que ela não está muito treinada, já que eu achava que as outras mesas estavam bem mais distantes da minha do que realmente estavam.

Em alguns momentos, eu cansei de olhar a escuridão e fechei os olhos, dava no mesmo. Sabe aquela coisa de "o que você faz quando ninguém te vê fazendo?" Então, eu dancei na cadeira, fiz caretas, repousei a cabeça na parede, passei o dedo no prato e lambi para ter certeza que tinha terminado. A cada prato uma surpresa gastronômica. Nós estamos tão acostumados a ver a comida, que os sabores, texturas e odores não são suficientes para identificar alguns alimentos.

Um cego no jantar às cegas

Das 14 pessoas que estavam participando da experiência, um foi apresentado como especialista em jantares às cegas. O nome dele era David, um cego que estava jantando com o seu companheiro. Enquanto 13 pessoas estavam desfrutando do privilégio de provar a cegueira, ele estava ali fazendo o que ele faz todo dia, vivendo às cegas e levando o namorado para mais perto da sua realidade. Para mim, a presença do David deu outro sentido para a experiência. Compartilhar essa sensação com um cego me fez refletir sobre como, muitas vezes, somos ignorantes ao supervalorizar alguns sentidos e não valorizar outros.

Durante o jantar não teve foto do prato em rede social, ninguém tocou no celular, nem surgiram comentários sobre a estética do lugar ou das pessoas. Numa sociedade em que a imagem é tão importante, era como se naquele ambiente todos estivessem em pé de igualdade. Pelo menos até a luz ser acendida.

Enxergar é um privilégio que usamos para bem e para o mal

Na volta para casa, eu me peguei pensando em quantas vezes a aparência nos faz pré-julgar alguma coisa. Ou nas outras tantas vezes que a gente prefere se preocupar mais com a nossa imagem do que com sentir e aproveitar. Quantas vezes você fechou os olhos e se permitiu escutar a música e dançar numa cadeira de um restaurante? Quando foi a última vez que a textura do prato e do copo foram importantes para você? Quantas vezes você permitiu que o olfato e o tato fossem os seus guias?

Depois de servir a sobremesa, acenderam uma pequena luz sem avisar. A sala era bem menor do que eu achava e as mesas estavam bem próximas uma das outras. Que especial foi experimentar tudo isso!. Eu saí de lá refletindo muito sobre a experiência, sobre a importância do toque, do sabor, dos sons e dos cheiros. Quando a luz acendeu, todos voltaram a enxergar e, imediatamente, começaram a (re)avaliar o lugar. Menos o David, que sabe viver sem ver num mundo que olha mais do que sente.

Onde?

MajareTa

Calle del Almendro, 18, 28005 Madrid

restaurantemajareta.com

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